O Ministério Público Federal (MPF) denunciou à Justiça Federal seis pessoas por homicídio culposo e atentado contra a segurança da navegação no naufrágio do navio Anna Karoline III, que deixou 42 mortos, em 29 de fevereiro de 2020. As investigações concluíram que o dono do navio, dois comandantes – o do Anna Karoline III e o de outra embarcação –, dois militares da Marinha e um despachante são responsáveis pela tragédia. A ação, ajuizada na segunda-feira, 7, visa responsabilizar os envolvidos, busca a reparação às vítimas, com indenizações de R$ 50 mil a R$ 200 mil por pessoa, e o ressarcimento de R$ 2,9 milhões aos cofres públicos.
Inicialmente, as investigações foram conduzidas pela Polícia Civil do Amapá. Após, pela competência federal para apurar o caso, a Polícia Federal assumiu as investigações, tendo concluído o inquérito no fim do mês passado. O trabalho apontou que a causa determinante do naufrágio do Anna Karoline III foi a perda de estabilidade em decorrência do excesso e da má distribuição de carga a bordo. Dados da Capitania dos Portos do Amapá indicam que o navio possuía capacidade máxima de carga de 95 toneladas. No dia do sinistro, porém, foram embarcadas aproximadamente 173 toneladas de carga.
Laudos periciais indicaram que o navio, construído em 1955, também apresentava falhas estruturais de segurança por falta de manutenção. O disco de Plimsoll – marca no costado da embarcação, em ambos os bordos, que indica o limite até o qual o navio pode ser carregado com segurança – foi adulterado.
A alteração deslocou a marca a quase quatro metros à frente, criando ao observador externo a falsa impressão de segurança quanto à capacidade de carga. O ilícito é imputado ao dono da embarcação, Erlon Pereira Rocha; e ao comandante, Paulo Márcio Simões Queiroz, a quem o navio era indevidamente locado. Consultada, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) informou que, além de a embarcação não poder ser sublocada pelo dono a terceiros, operava o trecho entre Santana (AP) e Santarém (PA) sem autorização da autarquia.
Durante a fiscalização da Capitania dos Portos em Santana, que durou cerca de 5 minutos e também foi falha, o excesso de carga foi omitido. Os documentos apresentados pelo comandante e pelo despachante aos fiscais continham informações falsas a respeito do quantitativo de carga e de passageiros do navio, indicando números muito inferiores aos efetivamente existentes na embarcação. Diferentemente do informado à autoridade marítima, não havia apenas 29, mas pelo menos 93 pessoas a bordo.
A viagem, que partiu do Porto do Grego, em Santana (AP), por volta das 18h, percorreria 300 milhas náuticas até Santarém (PA). Ao alcançar 80 milhas, navegando pelo Rio Amazonas, entre 4h e 5h da madrugada, o comandante realizou manobra irregular para reabastecer clandestinamente o navio. Outra embarcação, denominada Albatroz, foi atracada na lateral do navio para efetuar o reabastecimento com óleo diesel.
Durante a operação, a embarcação deu os primeiros sinais de adernamento. Em poucos minutos, o navio Anna Karoline III naufragou. No momento, chovia e ventava, e muitos passageiros ainda dormiam, dificultando a fuga da tragédia. Das 93 pessoas que estariam a bordo, 42 foram a óbito – duas crianças, dadas como mortas, continuam desaparecidas – e 51 foram resgatadas com vida.
O MPF pede à Justiça que fixe indenização mínima aos sobreviventes, de R$ 50 mil por pessoa, excluindo do cálculo o comandante da embarcação, também listado como sobrevivente nas listas oficiais. Às famílias das vítimas que perderam a vida, é pedida indenização de R$ 200 mil por pessoa. Também deve ser ressarcido aos cofres públicos o valor da operação de resgate de vítimas e reflutuação do navio.
Embora a obrigação legal de retirar a embarcação do fundo do rio fosse do proprietário, o Governo do Amapá – dado o estado de calamidade e a necessidade de resgate dos corpos – contratou empresa especializada no serviço por R$ 2,4 milhões e teve custos extras de aproximadamente R$ 600 mil. Somados, os valores da indenização e do ressarcimento dos danos aos cofres públicos chegam a R$ 13,8 milhões. O valor deverá ser pago pelos denunciados, em caso de condenação.
Para o crime de atentado contra a segurança de transporte fluvial, do qual resulta naufrágio, a pena é de 4 a 12 anos. Como se trata de crime de perigo doloso do qual resultou morte, a pena privativa de liberdade pode ser aplicada em dobro. Já pelo crime de homicídio culposo, a pena varia de 1 a 3 anos de detenção e pode ser multiplicada pelas 42 mortes registradas no naufrágio.
Os militares da Capitania dos Portos do Amapá, responsáveis pela fiscalização, respondem ainda pelo crime de prevaricação, que prevê pena de detenção de 3 meses a um 1 e multa. Por falsificar documento particular, o despachante e o comandante do navio podem ser condenados a pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. Pelo comércio e abastecimento irregular de óleo diesel na embarcação, os comandantes do navio Anna Karoline III e do Albatroz devem responder por crime contra ordem econômica, com pena de detenção de 1 a 5 anos.